DOM MIGUEL, O REI QUE REFORJOU A ESPADA

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O nome do arcanjo Miguel, padroeiro da Legitimidade, foi despreocupadamente dado ao sétimo filho do príncipe-regente Dom João VI e de sua esposa, a princesa Dona Carlota Joaquina.

No entanto, com o passar dos anos, o destino deste jovem infante tornou-se inegavelmente ligado ao conteúdo profético desse mesmo nome. O Calvário da Legitimidade será personificado por este rei português de forma exemplar, equiparando-o aos outros Monarcas “Detestáveis” – pela sua Catolicidade – na História Europeia, como Carlos Stuart para os Jacobitas Escoceses, Dom Carlos de Borbón para os Carlistas Espanhóis e o Conde de Chambord para os Legitimistas franceses.

Rei Tradicionalista - ou para alguns "Cruel Usurpador" - Dom Miguel posiciona-se na História de Portugal como um dos reis mais controversos, sem dúvida aquele que mais ódios e paixões despertou na nossa complicada Era Contemporânea. Símbolo do Portugal Profundo e Católico que o liberalismo temeu e hostilizou, a sua figura carismática fez sombra à popularidade dos Reis Constitucionais, privando-os da simpatia do povo na mesma medida em que a tinham gozado dos seus antecessores. Conta-se que por ocasião da visita de Dom Pedro V ao Santuário de Nossa Senhora da Rocha, imagem que era alvo particular da devoção miguelista, este havia-se cruzado com uma velhinha que lhe dissera que, embora nutrissem todos os locais de muito carinho por esse rei querido, de quem eles sentiam falta era daquele que lhes fora tirado, aquele que se fora embora. A ameaça do ressurgimento miguelista durou muito depois do exílio de Dom Miguel do território nacional, mantendo-se os seus partidários (o Partido Legitimista) em atividade política ativa ate meados do século XX.

ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE

O papel que Dom Miguel desempenha na nossa História está ligado a esse duríssimo combate entre a Tradição e a Modernidade que assaltou o Mundo Ocidental a partir do século XVIII. Esse assalto prende-se, contudo, à destruição da unidade do mundo cristão iniciado pela Reforma Protestante do século XVI. A grande tradição europeia está povoada das lendas de grandes reis que purificaram os seus reinos após períodos turbulentos de caos e desordem: desde o Rei Artur, passando por São Fernando de Castela e São Luís da França, o grande Santo Estevão dos Húngaros ou Frederico Barba-Ruiva para os imperiais germânicos, todas estas personagens de qualidades míticas possuíam um grupo de qualidades comuns. Eram homens piedosos, corajosos e valentes, detentores de algum tipo de habilidade mística (como o dom de curar) que afirmava a sua concordância com a natureza divina da sua Realeza.

A personalidade profundamente europeia desta tradição cavaleiresca está plasmada nos Nove da Fama, os modelos exemplares do ideal de cavalaria, que sintetizam as três tradições que formam a Europa: a pagã ou gentia (através de Heitor de Tróia, Alexandre Magno e Júlio César), a hebraica (através de Josué, filho de Abraão e conquistador de Canaã, David, rei de Jerusalém e Judas Macabeu, reconquistador da liberdade dos israelitas) e por fim, a cristã (Artur, rei dos Bretões e dos Cavaleiros da Távola Redonda, Carlos Magno, Primeiro Imperador do Sacro-Império e Pai da Europa, Godofredo de Bulhão, cruzado e primeiro rei da Jerusalém retomada aos sarracenos).

A deforma protestante e mais tarde o iluminismo, especialmente na sua vertente revolucionária, deitam por terra esta cultura conjunta, criando uma nova religião social sobre as ruínas da antiga ordem: o Liberalismo, e posteriormente os seus sucedâneos Capitalismo e Socialismo. O mundo da Tradição não é, contudo, derrotado facilmente, e através dos seus paladinos, entre os quais se conta em posição de relevo Dom Miguel, resiste.

DOM MIGUEL NO TRONO

As circunstâncias da subida de Dom Miguel ao trono português são abundantemente conhecidas. No contexto de uma revolução de inspiração maçônica, em 1820, e da consequente constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 (outorgada abusivamente por um príncipe estrangeiro), Portugal deparava-se em 1828 com o retomo de um príncipe que simbolizava o poder régio na sua vertente tradicional, apoiado por séculos de história e Religião, para libertar Portugal das influências estrangeiras e das lojas Maçônicas que dominavam, especialmente, o Exército.

Desde sempre atuando como símbolo rompante do partido apostólico criado por sua mãe – Dom Carlota Joaquina –, Dom Miguel reagiu sempre aos avanços das facções radicais do liberalismo durante o reinado de seu pai, procurando impor-se através de dois golpes militares (a Vilafrancada em 1823 e a Abrilada em 1824) de efeitos muito limitados. Foi exilado após esta última tentativa, uma vez que o seu moderado pai, o rei Dom João VI, não apreciava o seu método de aplacar as alterações políticas da época, inicia uma longa navegação pela Europa que termina em Viena, quando no seguimento da morte do rei de Portugal, quando seu irmão Dom Pedro (IV) é reconhecido como legítimo sucessor da Coroa; uma vez que este encontrava-se indisponível para ser elevado ao trono português (pois já era rei no Brasil), criou-se um compromisso político entre as diferentes facções políticas da época que concluía que Dom Miguel fosse rei de Portugal, casando-se com a sobrinha Dona Maria da Glória (“Maria II”, filha de “Dom Pedro IV”). Antes de partir de Viena, jura cumprir os preceitos da Carta Constitucional de 1826, esta própria foi o resultado muito insatisfatório e pouco sustentável do compromisso entre as diferentes facções liberais.

Assim a sua aclamação como Rei Legitimo nas Cortes de 1828, convocadas e realizadas á moda antiga, foi vista pelos liberais como uma falta à palavra dada. Não nos interessa aqui repetir as velhas questões de legitimidade discutidas ao longo dos últimos dois séculos por historiadores, polemistas e políticos dos dois lados da contenda entre liberais e miguelistas. Entre os portugueses, os grandes atos de bravura pela integridade nacional raras vezes respeitaram o cumprimento restrito das normas e até dos juramentos cerimoniais. Foi o direito da força que legitimou Dom João I em Aljubarrota, enquanto que Dom João IV, em 1640, quebra um juramento de fidelidade ao último dos Filipes a governar em Portugal. Joseph de Maistre explica-nos que “Deus faz os reis, literalmente. Ele prepara as estirpes reais, amadurece-as no meio de uma nuvem que encerra as suas origens. Elas depois surgem coroadas de glória e de honra: impõem-se, e é esse o maior sinal da sua legitimidade.”

O governo de D. Miguel foi assombrado pelo clima de violência que assolou o país. Muitas vezes rodeado de conselheiros menos dignos, de um Exército que se provaria desertor e hesitante, o “desejado do Povo” tornou-se a desculpa perfeita para que vários interesses privados, um pouco por todo o país, fossem postos em prática. Não faltaram traidores à sua causa, entre os quais se conta o caso pitoresco do Frei João de São Boaventura, que num sermão perante Dom Miguel afirmou energicamente que havia três formas de matar liberais: pela forca, pela fome e por envenenamento. Em 1832, contudo, sentindo os ventos da política agitarem-se no sentido contrário, passa-se para o lado dos liberais e escreve um panegírico (elogio público e solene) à Dom Pedro “IV”. O dito frade morre anos depois, em situação confortável na vida, tendo já semeado extensa descendência ...

Se as violências e as perseguições políticas são, hoje em dia, analisadas pelos historiadores com ares de espanto e choque, resta-nos considerar que antes da subida de Dom Miguel ao poder já tinha havido perseguições e prisões políticas, que a Censura já limitava a liberdade de imprensa, e que depois da Guerra Civil estas continuaram. Com a diferença que a guerra que o miguelismo movimentou aos seus opositores era uma guerra aberta e declarada, enquanto que as discriminações e violências que sofreram muitos portugueses após a 1834 estavam veladas sob a vã promessa de anistia prometida pelos liberais aos colaboradores com o regime miguelista.

Nunca saberemos como teria sido o reinado de Dom Miguel caso este tivesse ganho a guerra fratricida que opôs duas facções portuguesas de 1832 a 1834. Sabemos contudo que a sua ação política no exílio dão sinais óbvios de um homem que amou profundamente Portugal, que estava interessado tanto na continuação da tradicional constituição política portuguesa mas também no progresso desta Nação, como se nota pelo seu Ministério, que englobava homens inovadores como José Acúrsio das Neves e Francisco Alexandre Lobo, ou a sua visita em 1862 à Exposição Universal em Londres.

DOM MIGUEL NA TRADIÇÃO PORTUGUESA E EUROPEIA

A famosa viagem de 1832 que Dom Miguel faz ao Norte do País está polvilhada de momentos que ficaram para a memória do povo português, como aquele que ainda aponta com carinho a povoação de São Pedro de Oliveira, perto de Braga.

No entanto, é a sua passagem por Coimbra, entre os dias 4 e 29 de Outubro, que demonstra como este rei assumiu na sua plenitude o papel histórico que lhe coube.

Inserida num plano centrado na vida de Dom Afonso Henriques, as viagens de Dom Miguel mostram-se como um percurso de iniciação à própria tradição monárquica de Portugal, passando por todas as terras com significado simbólico na história e mitologia do Reino.

Em Coimbra, Dom Miguel deslocou-se, no dia 21, a cavalo e de uniforme militar, ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde visitou os restos mortais do primeiro rei de Portugal (Dom Afonso Henriques) e de Dom Sancho I, nos mausoléus mandados construir por Dom Manuel I na Igreja do Mosteiro. Uma vez já dentro do convento, Dom Miguel contemplou a cruz de ouro de Dom Afonso I, bem como a sua espada conquistadora, relíquias religiosamente guardadas. No dia 23, Dom Miguel mandou abrir à sepultura do fundador da nacionalidade, numa cena comovente em que os presentes sentiram que a poeira acumulada pelos séculos de outrora se levantara, tal como as frias cinzas do rei primevo, para elevar a imaginação ao exemplo dado pelos antigos aos novos: Reforja-se a Espada da Legitimidade no Fogo Sagrado da Tradição, unindo o primeiro rei ao último.

A segunda etapa iniciática de Dom Miguel, é a sua visita ao Mosteiro de Santa Clara, onde abriu, com o auxílio do bispo de Coimbra, a sepultura da Rainha Santa Isabel. Procedeu depois Dom Miguel, bem como os demais membros da sua comitiva, ao beijar reverentemente da mão mirrada da Rainha Santa.

Reata-se assim a ligação do último rei à Religião do seu Povo, da Realeza ao Catolicismo, interrompida pela violência jacobina.

Por fim. D. Miguel passeia-se pela Quinta da Fonte das Lágrimas, numa tarde do dia 24 de Outubro, onde recebe dos donos da Quinta uma “prenda dos louros cabelos’, conservados numa lâmina. Este pequeno ato simbólico une Dom Miguel ao último elemento da Tradição cavaleiresca europeia: o Amor.

Unidos os três elementos (a Tradição, a Santidade e o Amor), Dom Miguel parte para a longa jornada da História equipado dos mesmos atributos que os antigos leis das lendas.

Até nas suas falhas Dom Miguel encarna o rei mítico europeu. Incapaz, devido ao seu espírito enérgico, de obter compromissos mesmo entre os seus aliados, vítima do seu anti-inglesismo e da sua incapacidade para negociar como as novas forças políticas que despontavam, Dom Miguel era amado pelo povo devido a este mesmo “temperamento de morgado", como tão bem o descreve Carlos dos Passos no seu livro “Dom Pedro IV e Dom Miguel I”. A sua derrota sofre dos mesmos males que condenaram outros monarcas mártires, como Luís XVI da França, Carlos I da Inglaterra e Nicolau II da Rússia: o desejo de manter a Tradição Constitucional do Estado e da Igreja nos seus respectivos elementos contra uma plêiade de inimigos do trono e do altar, conjugado com uma fraqueza pessoal que será, no sacrifício final, redimida pelo sacrifício pessoal. Luís XVI compensará a sua hesitação na guilhotina, tal como Nicolau II e a sua família, perante o esquadrão de fuzilamento soviético. Carlos I e Miguel I, contudo, sofrerão a morte, no caso do primeiro, e o exílio, no caso do segundo, devido a sua implacável impetuosidade.

Não faltou a D. Miguel o apoio dos heróis da Tradição europeia. La Roche-Jacquelin junta-se às suas hostes, bem como Emmanuel du Chillon, dois antigos veteranos da Vendeia (França). A união entre a causa miguelista e carlista, na Espanha, era uma união de irmãos. Muitos outros acorreram à causa portuguesa, ou apoiaram-na, como o General Wellington, contra as hordas de “mercenários e estrangeirados que vinham destruir as instituições de seis séculos, insultar a religião portuguesa”, citando Oliveira Martins no seu livro “Portugal Contemporâneo”.

Tal como Aragorn, no “Senhor dos Anéis" de J.R.R. Tolkien, também Dom Miguel tem de passar pelo Caminho dos Mortos, onde enfrenta as injúrias e a vergonha da denota. Enfrenta esse novo desafio de forma nobre e real, distribuindo os seus bens entre os seus leais vassalos e abdicando do trono para segurança destes e para evitar mais derramamento de sangue português, assim como mais tarde abdica da pensão prometida pelo governo liberal, recusando-se a viver na ignomínia comparticipada pelo Estado que lhe fora prometida, mantendo a sua pretensão e dos seus descendentes à Coroa. Este ato de nobreza e honradez, dará origem no futuro, à própria legitimidade da atual Casa de Bragança, descendente de Dom Miguel.

Mantendo a sua vocação para a caridade extravagante, que o deixava tantas vezes despojado, vivia com a sua família no exílio com uma economia restrita. Manteve no entanto, o seu alegre espírito combativo, como é revelado pelo seu gosto pelas cavalgadas.

Morre Dom Miguel como os reis de outrora. Afetado por uma doença pulmonar, não morre no palácio familiar de Bronnbach, mas antes, segundo a princesa de Lowenstein nos relata, “num pavilhão de caça no meio de grandes florestas’. À sua cabeceira estava apenas o cunhado, com quem tinha partido, já doente, para a sua última caçada. Uma última aventura solitária, como tantas das que já tivera em Portugal, em comunhão com o ar livre e puro, como atesta o seu amor pela já referida vila de São Pedro de Oliveira, tange dos refolhos da Corte lisboeta. Sem dúvida, uma morte digna de um rei lendário.

Por Manuel Rezende
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