As colônias norte-americanas herdaram da Inglaterra seu profundo conservadorismo político, isto é, o desejo de estabilidade e sua oposição visceral à mudança. Mesmo após a independência, a constituição norte-americana continuou sendo tributária dos ideais do iluminismo inglês e das estruturas políticas do passado britânico.
O iluminismo não só constituiu um vasto movimento cultural, mas também “uma nova forma de crer, segundo a qual os homens buscaram acomodar a religião ao mundo moderno”. Na América do Norte o iluminismo dos “Pais fundadores” representou uma amálgama da religião cristã com o espírito secularista norte-americano que estava em desenvolvimento desde a época de Plymouth Rock, um espírito de democracia, de igualdade e rejeição dos privilégios, um espírito de independência, individualismo e liberdade.
Os fundadores da América do Norte anglo-saxônica, os “Pais peregrinos”, eram puritanos que fugiam da perseguição quando, em sua perspectiva, a Inglaterra se apartou do verdadeiro espírito da Reforma. Pensaram que haveria somente um caminho para que os “verdadeiros crentes” pudessem sobreviver: fugir para uma terra virgem, na qual pudessem edificar sua “cidade em cima do monte” uma “Nova Jerusalém”, um lugar seguro para aqueles que desejavam viver retamente. Essa terra era a Nova Inglaterra, e mais, concretamente, a colônia da Bahia de Massachusets.
Como crença religiosa, o puritanismo pregava a depravação completa do homem depois do pecado original, de tal maneira que todas as suas obras e realizações são essencial e irremediavelmente más. A única esperança para a salvação do puritano ficava em um ato pessoal de fé na benevolência de Deus de acolhê-lo nos céus por toda a eternidade, não obstante sua maldade intrínseca.
Convencidos de que Deus predestina os homens ao Céu e ao Inferno, e que nenhuma ação humana pode mudar o resultado do seu destino, interpretou-se que um sinal de sua predestinação à glória estava dado por sua própria fidelidade à palavra e vontade de Deus. Na histérica exaltação que lhes fez conhecer que seu comportamento os havia separado da “Massa dos condenados”, só teve desprezo para com toda alegria sensível e o que qualificava como “vaidade do mundo”, quer dizer, a arte, a literatura, as modas, os jogos, etc.
Movidos por esse “sombrio entusiasmo”, os puritanos estabeleceram na América do Norte um Estado confessional, reproduzindo bastante o modelo medieval da cristandade na concepção da relação Igreja-Estado, e na afirmação da independência e supremacia do poder espiritual. Contudo, essas alegações teocráticas não eram hierárquicas e impessoais como na Igreja medieval; baseavam-se em um profundo individualismo, resultante da certeza da eleição e do dever do indivíduo de cooperar na realização da intenção divina frente a um mundo hostil e pecador.
Assim, pois, o puritanismo era aristocrático e democrático ao mesmo tempo: Aristocrático, na medida em que os “santos” eram uma seleta minoria escolhida dentre a massa da humanidade caída, e infinitamente superiores aos filhos deste mundo; mas democrática, já que cada um era diretamente responsável ante Deus, que “não faz acepção de pessoas”.
A própria desumanidade disfarçada do puritanismo, proposta como “super-naturalismo” e imposta politicamente na Nova Inglaterra, produziu um efeito contrário ao esperado: em seu horror, afastou os homens de Deus. O conservadorismo inglês, profundamente arraigado, impediu inconscientemente aos puritanos reconhecerem esse efeito explicitamente.
Em mudança, seguiram apelando a Deus, e empregando terminologia cristã ainda quando apresentavam idéias não cristãs, e desse modo ocultaram – ou não deram-se conta – sua própria apostasia. Desta maneira, o puritanismo foi convertido na fé secular da América do Norte.
Dado que os homens estão fundamentalmente sozinhos em seu contado e sua resposta a Deus, no plano divino não há espaço para a sociedade, suas instituições e autoridades, especialmente estando todas as obras do homem radicalmente viciadas. O puritanismo terminou necessariamente pregando um individualismo “atomizante”. O indivíduo deve confiar só em si mesmo para conduzir sua própria vida e alcançar seus objetivos. No estado atual da humanidade talvez devesse existir uma “igreja” e certa forma de organização social por razões práticas e identificatórias, mas estes são somente instrumentos de um agregamento democrático de crentes e totalmente independentes. As instituições seculares representam uma interferência em sua vida; como tais, são apenas toleradas, e todo trato com elas deve ser evitado como se fosse uma praga, exceto nos termos fixados por cada um.
A dicotomia entre um Deus perfeito e um homem absolutamente corrompido pois em questão a verdade e o valor da Encarnação e da Redenção, e colocou Deus definitivamente mais além do alcance humano. A confiança transcendental em Deus foi substituída por uma imóvel confiança na capacidade do homem para conseguir seus próprios fins, e estes fins, destituídos de transcendência, foram necessariamente reduzidos por uma visão “intramundana”, essencialmente, a prosperidade material.
O abismo existente entre o criador e a criatura – que eles aprofundaram – fez com que os puritanos se relacionassem com o mundo em um sentido novo: pelo lado puramente terreno da natureza. Deus criou o mundo livre e gratuitamente, totalmente distinto de sua própria divindade infinita.
Portanto, esse mundo agora pode ser tomado e analisado, não conforme a participação que este havia atribuído em padrões divinos e estáticos, mas sim de acordo com seus próprios e distintos processos dinâmicos materiais, independentemente de referências diretas a Deus e sua realidade transcendental. Em uma reação pendular, uma vez que a natureza foi arrancada da tutela de Deus, o medo frente a ela e ansiedades de transcendência conduziram ao florescimento da bruxaria.
OS PURITANOS
Esta parte radical do protestantismo teve origem na Inglaterra Pós-Reforma, durante o reinado de Elisabete I.
Crenças e Características
* O princípio central do puritanismo era a autoridade suprema de Deus sobre assuntos humanos; para alguns, tal autoridade se expressava pelo grau de predestinação ensinado por João Calvino, embora nem todos compartilhassem dessa visão;
* Os puritanos enfatizavam que o indivíduo devia ser convertido pela graça de Deus. Cada pessoa, com que Deus demonstrava misericórdia, devia compreender a sua própria falta de valor e confiar que o perdão que está em Cristo lhe havia sido dado, e assim, por gratidão, deveria seguir uma vida humilde e obediente;
* Ênfase no estudo privado da Bíblia;
* Desejo de que todos alcancem educação e esclarecimento (Especialmente para que todos possam ler a Bíblia por si mesmos);
* Propiciavam o sacerdócio de todos os crentes.
* Grande simplicidade na adoração, traduzida na exclusão das vestes sacerdotais, imagens, velas, etc.•;
* Não comemoravam feriados tradicionais, sustentando que violavam os princípios regulares de adoração;
* Guardar obrigatoriamente o dia da Ressurreição de Jesus, o Domingo.•;
* Alguns aprovavam a hierarquia da Igreja, enquanto outros procuravam reformar as igrejas episcopais ao modelo presbiteriano;
Alguns puritanos separatistas eram presbiterianos, mas em sua maioria eram congregacionalistas;
Ao fim do século XIX, enquanto Leão XIII elogiava os esforços da Igreja na América do Norte, recordava a sua hierarquia que a situação particular de sua Igreja e seu estado florescente não deviam levar a conclusão que “o modelo ideal da situação da Igreja tinha que ser encontrada na América do Norte ou que é universalmente legal e conveniente que a política e a religião sejam desvinculados e separados, ao estilo americano”. Na verdade, mais além de suas realizações atuais, “dará mais e melhores frutos se, além da liberdade, desfrutar do poder das leis e da proteção do poder público”. Logo depois, mais concretamente na carta “Testem Benevolentie” dirigida ao Cardeal James Gibbons, Leão XIII condenou o erro denominado “americanismo”, que teve origem com o padre Isaac Hecker, ativamente promovida por alguns padres franceses na França, e aparentemente foi espalhando-se entre os norte-americanos.
“Americanismo” não deve ser confundido, é claro, com o amor legítimo ao país, o qual nos exige a lei divina. Em termos de erro sobre a doutrina católica, foi e continua sendo uma transposição do “espírito” não católico nascido do âmbito secular à esfera religiosa do catolicismo.
Assim pois, o “americanismo” pregava a necessidade de adaptar a Igreja à moderna e progressista civilização norte-americana. Preconizava, por conseguinte, a adoção do princípio de liberdade, uma vez que a ênfase católica “europeia” sobre a subordinação do indivíduo à autoridade era “estranha” ao temperamento do povo americano. Especificamente, considerava que a democracia era a forma de governo mais adequada ao Cristianismo, e propunha que o equilíbrio entre a autoridade e a liberdade alcançada na Constituição norte-americana fossem adotados pela Igreja enfatizando a iniciativa individual, sob a direção do Espírito Santo e a limitação da autoridade externa. No que diz respeito às relações entre Igreja e Estado, disse que o modelo americano não era apenas uma solução razoável, devido a certas circunstâncias, mas o mais desejável para o mundo.
Esta tendência tem se tornado uma constante na história americana católica. Charles Carrol de Carollton, o signatário católico da Declaração de Independência, disse que ao fazê-lo, o fez “tendo em vista não só a independência da Inglaterra senão também a tolerância a todas as seitas que professam o cristianismo, conferindo-lhes os mesmos direitos .” John Carroll, seu irmão, primeiro bispo de Baltimore, também acreditava na liberdade religiosa, que ele considerou uma “benção e um benefício”, e um direito natural, mas não uma concessão política. Consequentemente só tinha elogios para com o sistema político americano de separação entre Igreja e Estado. Em 1830, o monsenhor John England (bispo de Charleston) mostrou seu apreço por todas as coisas americanas através da adoção de uns estatutos para o governo de sua diocese. Monsenhor England ignorou sem mais a “Mirari Vos” de Gregório XVI, declarando que a condenação da liberdade religiosa não se referia à América do Norte.
Da mesma forma, Monsenhor Martin Spalding (Bispo de Baltimore) disse em 1865 que o “Syllabus”de Pio IX estava se referindo apenas ao “falso liberalismo europeu”, e certamente não tinha nada a ver com a América. Em 1857 o padre Hecker “expressou que estava <<a favor da civilização americana, com seus usos e seus costumes >> porque << é o único meio pelo qual o catolicismo pode se tornar a religião do nosso povo. >>”. Prenunciou que para o êxito do experimento democrático necessitava-se de uma única religião, uma só Igreja, e que somente se “os americanos se fizessem católicos, então os católicos confirmariam as reivindicações da democracia e as fariam suas; assim, o reino de Deus estaria à mão.”
Em questões relativas à doutrina da fé, o “americanismo” foi até os extremos da adaptação para não ofender os protestantes. Em 1858, Mons. John McCloskey (bispo de Albano), que mais tarde se tornou o primeiro cardeal americano, considerou “inoportuna” a declaração do dogma da Imaculada Conceição e que podia ferir a sensibilidade protestante, em consequência, se negou a difundir a doutrina em sua diocese… O “americanismo” estava pronto a esconder ou diluir um dos mais característicos e essenciais dogmas católicos como uma estratégia de proselitismo. Como afirmava o padre Hecker, a apologética deve “expor as necessidades do coração e buscar seus próprios objetos, ao invés de (apresentar) uma lógica da igreja.”, o que é, na verdade, modernismo puro.
Em relação à vida moral e espiritual de um católico comum, o “americanismo” exaltou a superioridade das virtudes naturais e “ativas” em detrimento da sobrenatural e “passiva”, e transferindo o ideal político à esfera espiritual, pregava que o Espírito Santo guiava imediatamente os indivíduos, sem intermediação de direção espiritual externa .
Finalmente, o “americanismo” aceita como fato irrevogável do “destino manifesto” do país a noção puritana de que a América é o “povo escolhido”, e a ampliou para incluir a Igreja americana.
A condenação fulminada por Leão XIII constituiu o último estágio da disputa que dividiu a hierarquia americana a respeito de como salvaguardar o catolicismo no país, já que existiam inegáveis perigos para seu futuro.
Para os imigrantes, que representavam a massa do povo católico na América – e não “a antiga pátria” deixada para sempre – proporcionou o marco para suas vidas e o futuro. No entanto, alguns bispos perceberam imediatamente que no processo de integração, os imigrantes também absorveram o secularismo americano e o irresistível desejo de riqueza material, ambos profundamente anticatólicos, corruptos e corruptores; enquanto se “americanizavam”, os filhos e netos dos imigrantes abandonavam a fé…
Além disso, a recusa clara de integrar-se na sociedade americana implicava na alternativa insustentável de formações de guetos étnico-religiosos, como foi acontecendo com a existência de sobreposição de paróquias nacionais. Além disso, foi necessário combater a propaganda protestante, que tinha os católicos como “estrangeiros”, estranhos à população americana, promovendo projetos vergonhosos para o país, o que propiciou ataques à pessoas e propriedades dos católicos.
Por isso, outros bispos insistiam que quanto mais rapidamente os católicos se integrassem na vida americana, tanto melhor, não apenas por causa de sua própria paz e prosperidade, senão também para a paz na Igreja. No entanto, os promotores de tal integração foram muito além da prudência necessária; seu “desejo de ‘integrar-se’ à vida americana levou-os a não considerar os perigos de desertar da fé (…) Ao mostrar seu ‘patriotismo’, começou a abraçar a ‘religião’ dos Estados Unidos, e (…) finalmente, a adoção desta falsa religião ‘patriótica’ levou-os a acomodar o catolicismo com as exigências da cultura pluralista insípida que os rodeava.”
Gibbons e seu partido estavam convencidos de que o mundo entrou numa nova era de democracia, individualismo, atividades e exigências sociais e que esse novo mundo americano encarnava o futuro. Se a Igreja quisesse sobreviver, teria que adaptar-se “deixando princípios que não se pode defender e assumindo novas atitudes em função das novas condições”.
Eles também foram persuadidos de que a responsabilidade de conduzir (a Igreja) por este caminho recaía sobre a Igreja americana”. Em suma, acreditavam firmemente em uma versão católica do “destino manifesto”da América.
A verdadeira natureza do erro condenado continuou sendo nebulosa para a maioria dos católicos americanos. Aqueles que pudessem ser suspeitos de aderir a ele, negavam veementemente que algo como o censurado “americanismo” houvesse jamais existido na América. Mons. Ireland reclamou que a doutrina do padre Hecker e as conquistas americanas tinham sido mal interpretadas e distorcidas por alguns sacerdotes franceses exaltados. Alguns anos mais tarde, refletindo sobre a crise, um autor a chamou de “heresia fantasma”. A estratégia de negação, que logo se empregaria contra a condenação do modernismo, começava desde então a ser aperfeiçoada…
No caso do “americanismo”, no entanto, além da indubitável deslealdade de alguns bispos, é provável que haja outros fatores. O “americanismo” nunca foi apresentado como um sistema doutrinário, quer dizer, como uma síntese de princípios, razões e conclusões. Consistiu só em razões concretas, certamente manchadas de naturalismo e liberalismo, mas ainda assim capaz de ser rejeitada ou julgada amavelmente como imprudência ou excesso de zelo. Na verdade, o “americanismo” só atraiu a atenção de Roma em 1897, quando o padre Felix Klein traduziu a biografia de Walter Elliot sobre o padre Hecker. Na edição de Klein, as soluções práticas americanas foram expressas em princípios teóricos. Como inimigo do “americanismo”, o padre Charles Maignen observou que “quando um erro chega à França, ele torna-se claro e preciso”. Sendo “empreendedores” pragmáticos e com aversão profunda à teorias abstratas, os bispos norte-americanos não estavam habituados a ver suas realizações concretas traduzidas nos princípios abstratos que a inspiravam, e portanto, pareciam incapazes de identificá-los quando foram expostos. Daí a veemência da sua recusa por parte da hierarquia americana.
E esta negação pareceu surtir efeito. Não se tomaram medidas disciplinares e toda a alusão ao “americanismo” desapareceu pouco depois. Em maio de 1900, Mons. Ireland poderia escrever com confiança de Roma: “O Papa me disse que o documento sobre o ‘americanismo’ deveria ser esquecido, pois aplica-se somente a algumas dioceses da França”.
Apesar de Leão XIII condenar os erros que foram apresentados, apontou também que a condenação não poderia estender-se a “aos estatutos políticos, às leis e aos costumes pelos quais são governados”. Como quando ordenou a adesão dos católicos franceses à maçônica Terceira República Francesa, o Papa tinha uma visão idealista e equivocada das realidades políticas envolvidas, unidas a um espírito pacífico e a um otimismo infundado. Enganado pelas afirmações dos bispos americanos, ignorava a verdadeira natureza do espírito secularista americano e sua estruturação institucional.
Fonte:
https://www.fsspx.com.br/liberdade-religiosa-parte-iv-a-gestacao-do-espirito-americano/
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